30 contra todas: análise da rede de denúncia e solidariedade no Twitter


Por Bianca Bortolon e Luísa Perdigão

 

“Amassaram a mina, entendeu ou não entendeu?”. A frase, em tom de deboche, veio acompanhada de um vídeo compartilhado no Twitter pelo usuário @michelbrasil7 na última quarta-feira, 27. Nele, em meio a risos, jovens mostram uma garota de 16 anos desacordada e com o órgão genital sangrando. “Olha como está sangrando, olha como o trem passou”, gabava-se o agressor. Além dele, outros trinta e dois homens participaram do estupro coletivo, ocorrido em uma comunidade no Rio de Janeiro. Em um país que registra um caso de estupro a cada 11 minutos, segundo dados de 2014 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos deparamos com um ocorrido bárbaro, de proporções assustadoras, a partir de uma divulgação às claras e irônica, banalizando a chocante violência sofrida pela adolescente.

Em questão de horas, usuários da rede social mostraram-se indignados com a publicação do crime e deram início a uma série de denúncias à Polícia Federal e a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro como forma de cobrar ações e enviar dados sobre os agressores aos órgãos. Além disso, a rede mobiliza-se a fim de encontrar novas informações e organizar escrachos a partir deles, como a divulgação do número de celular de Michel Brasil, divulgador do vídeo. Em pouco tempo, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recebeu cerca de 800 denúncias e o Twitter retirou o vídeo do ar.

A narrativa de aversão e revolta das redes sociais reverberou nas ruas. Manifestações ocorreram em Porto Alegre e Brasília e outras capitais como São Paulo e Rio de Janeiro atos estão marcados para semana que vem. É importante ressaltar que a co-habitação entre movimento e tecnologia tornou a Internet, especialmente as redes sociais, uma mediadora – e medidora da temperatura – das ruas. Da estrutura performática de movimentos sociais ao ocupar o espaço público, o ambiente virtual, hoje, tornou-se um terreno fértil para organização coletiva e um instrumento de luta política, principalmente para o movimento feminista contemporâneo. Em 2015, por exemplo, foi possível observar sucessíveis mobilizações e campanhas que fizeram o uso de hashtags, como #primeiroassédio, #meuamigosecreto, #meuprofessorabusador, #meuprimeirobo e #mulherescontracunha.

Observou-se, assim, a formação de uma ampla rede de indignação e denúncias, estando nela também quaisquer informações e atualizações sobre os agressores, o estado de saúde física e mental da vítima ou o andamento do caso. Constituiu-se, por conseguinte, uma rede de repulsa ao crime e apoio à vítima. O Twitter, como um espaço plural de mobilizações e discussões, tornou-se palco para a expoente ascensão de manifestações e campanhas que utilizaram hashtags como ferramenta de enfrentamento e conscientização. Coletivos feministas impulsionaram uma vigília online contra o estupro e contribuíram para estimular campanhas de apoio e sororidade à vítima.  Hashtags como #estupronuncamais e #estupronãotemjustificativa alcançaram os Trendings Topics e instigaram um extenso debate acerca das temáticas que circundam o estupro e a violência contra a mulher.

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Imagem 1- Grafo de retweets


A coleta foi realizada a partir de uma série de termos entre os dias 20 e 27 de maio pelo script Ford, tecnologia de coleta e mineração de dados desenvolvida pelo Laboratório de Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ao todo, foram contabilizados 999.826 tweets, referentes a 343.543 usuários. Dos quase um milhão de tweets, 743.776 foram retweets e 62.662 continham menções a outros usuários.

A rede de RTs é densa e altamente conectada. Apesar do grande número e multiplicidade de atores, observa-se no grafo que não existem grupos de discussão isolados ou opostos. Isto significa que não há uma controvérsia ou um debate entre diferentes opiniões: a rede tem um comportamento ativista (policentrado, mas com um núcleo comum mobilizado). Iniciada graças à mobilização pela denúncia dos perfis que divulgaram o vídeo, a discussão presente na rede evoluiu para a indignação quanto ao estupro como tema geral. Tópicos como o esclarecimento sobre a cultura de estupro, repúdio ao crime de estupro e principalmente à culpabilização da vítima permearam os debates.

Três perfis destacam-se na rede: @majutrindade, @cleytu e @itspedrito. Todos, assim como diversos outros presentes na rede, tem como característica em comum o cunho humorístico. Entretanto, mesmo tais perfis, sempre presentes em outras redes virais graças às piadas envolvendo a pauta em questão, mobilizaram-se de modo a repudiar o ocorrido, incentivando a denúncia dos agressores entre seus seguidores e suscitando a importância e seriedade das discussões sobre estupro, jamais tratando-o como uma questão humorística e inclusive repreendendo quem assim fizesse. Perfis de humor, quando se engajam em temas políticos, atrai consigo uma massa de opinião que ultrapassam visões politicas mais ideologizadas, estimulando o “povão” a reagir e pensar sobre o tema. Eles são um dos índices para averiguar quando um tema sai das bolhas partidárias, ativistas e midiáticas.

Em redes de assuntos virais, uma constante já aguardada é a alta participação midiática, em especial de veículos tradicionais. No entanto, o grafo mostra um não protagonismo da imprensa como um todo, com apenas três nós de destaque aparente (@g1, @jornaloglobo e @midianinja). Ainda assim, a @midianinja possui maior relevância, estando inclusive diretamente conectada à personalidades com histórico de luta política à esquerda, como @zehdeabreu e @leandraleal.

O fato nasceu em rede e foi por ela potencializado, sendo desde as raízes uma rede ativista. Poucas horas após a divulgação do vídeo no Twitter, os usuários estavam mobilizados em denunciar o caso às autoridades responsáveis e tornar conhecidos tanto o ocorrido quanto os perfis dos agressores. A repercussão aumentou à medida que a rede se engajava a fim de tornar o fato cada vez mais conhecido, migrando os relatos sobre o ocorrido do Twitter para o Facebook.

A cobertura da imprensa iniciou horas após a viralização, algo criticado por ativistas como demonstração de desinteresse midiático em relação aos assuntos de violência contra a mulher e, especialmente, àquela ocorrida dentro da favela. Além disso, os usuários questionam o modo como a notícia é divulgada devido ao uso da palavra “suposto” para se referir ao crime ou à vítima mesmo quando há evidências em vídeo sobre o ocorrido. A relevância da imprensa acontece na rede no momento em que se iniciam as confirmações sobre o estado de saúde da vítima e o acompanhamento da investigação criminal do caso, hoje amplamente divulgado pelos principais veículos de comunicação.

As discussões da rede de RTs têm como tema central o estupro, de modo a repudiá-lo mas também promover um debate didático, desmistificando o ato. Em sua maioria, as discussões estão ligadas à culpabilização da mulher em casos de abuso, reprovando as justificativas criadas para transferir a responsabilidade do abusador para a vítima. Os usuários também frisam a importância de pôr em pauta a cultura do estupro: o que é, de quais formas ela se manifesta e como combatê-la, mais uma vez mostrando o caráter didático dos debates. Foram criados uma hashtag #culturadoestupro e um badge (filtro utilizado em fotos de perfil) “Pelo fim da cultura do estupro” para aqueles que desejassem demonstrar apoio simbólico à luta. Além dela, diversas outras hashtags foram criadas com propósitos semelhantes.

Além disso, houve alusão a casos recentes de grande repercussão na mídia a fim de ilustrar o panorama de constante medo em que as mulheres estão sujeitas. Dentre eles, foi relembrado o recente caso de estupro coletivo no Piauí, que resultou no falecimento de uma das vítimas, o atentado à apresentadora Ana Hickmann e a denúncia de violência doméstica registrada pela atriz Amber Heard, casada com o ator Johnny Depp. As constantes afrontas sofridas por mulheres no meio político foram recordadas através da recente audiência de Alexandre Frota com o ministro da Educação e Cultura Mendonça Filho. Em igual tom de deboche, Frota confessou ter cometido estupro em rede nacional, além de ter por anos participado da indústria pornográfica, uma das, senão a maior, fomentadoras da cultura de estupro no mundo.

 

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Imagem 3 – Nuvem de palavras

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Imagem 4 – Nuvem de hashtags

 

Dentre os tweets de maior popularidade (http://bit.ly/1slowy2, http://bit.ly/1Vpcpvj, http://bit.ly/1XZ61eV, http://bit.ly/1TPZzEb) , estão aqueles que explicam as diferenças entre ato sexual e o estupro, uma ferramenta de demonstração de poder, e quais fatores configuram estupro, desmistificando a ideia de que este acontece apenas em um beco escuro, além do significado de consentimento. Em uma rede tão conectada e sem controvérsias aparentes, quais motivos levam os usuários a se comportarem de maneira tão didática e explicativa?

Isso ocorre em resposta à repercussão culpabilizadora após a divulgação da identidade da vítima. Em contramão à rede no Twitter, ocorre paralelamente no Facebook um ataque ao perfil da adolescente. Nele, a jovem divulga duas breves declarações sobre o ocorrido, explicando estar bem e agradecendo ao inesperado apoio, além de utilizar o badge da campanha #pelofimdaculturadoestupro. No entanto, em pouco tempo acumulam-se nos comentários das postagens mensagens de agressão psicológica que a culpam pelo ocorrido, acusando-a de “procurar por aquilo” ou ter consentido com o ato, ainda que desacordada. Na tarde de sábado (28), o perfil da vítima no Facebook foi excluído.

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Imagem 4- Grafo de menções

 

O grafo de menções apresenta-se de modo bastante diferente do que o de RTs e deixa claro a particularidade da rede: o teor de ativismo pela denúncia. A partir da topologia dos nós, observa-se nitidamente uma clusterização formada pelos perfis mais mencionados da rede: @michelbrasil, @policiafederal, @pcerj, @juninhopierre e @riquinho_cdd. O ato de menção aos perfis supracitados, configura o caráter de denúncia da rede, mobilizada com intuito de cobrar ações e enviar informações aos órgãos policiais, Polícia Federal e Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Em rede, a denúncia é em tempo real, apesar das instituições ainda não estarem preparadas para percebê-la na mesma velocidade.

O perfil com maior número de menções foi @michelbrasil7, suspeito de envolvimento no caso e quem divulgou em sua conta pessoal no Twitter o vídeo do estupro. Diretamente conectado ao nó, estão outros dois perfis: @juninhopierre e @riquinho_cdd, ambos suspeitos de envolvimento no caso. Os tweets relacionados aos usuários dividem-se entre escracho e tentativa de alerta às autoridades, e informações pessoais, como número do celular, referentes aos suspeitos, começam a ser compartilhados intensamente na rede.

Foi possível observar a presença de perfis de personalidades e ativistas influentes na rede social como @lolaescreva (http://bit.ly/1slnn9K), @pitty (http://bit.ly/1NXHvsg) e @srta_iozzi (http://bit.ly/1PakG5b). Em rede de Menções, é comum que os perfis (os pontos da rede) sejam os que mais atraem comentários e discussões. São usuários que comumente se posicionam à respeito de assuntos polêmicos que estão em voga e, desta maneira, se tornam referência pelo engajamento em discussões com temáticas relacionas ao feminismo. Além destes, o cartunista Vitor Teixeira, @vitortcartoons, obteve significativo número de menções relacionadas à charge de sua autoria, a qual fez  crítica à culpabilização da vítima.

 

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Imagem 5- charge do cartunista Vitor Teixeira

 

Na rede ampla que se constituiu, houve a alusão à casos anteriores de violência contra a mulher. No grafo em questão, há a menção do perfil da Ana Hickmann (@ahickmann), devido ao atentado que a apresentadora sofreu recentemente. Outro perfil que adquiriu notoriedade foi a do serviço de streaming @Spotify, que disponibilizou aos usuários uma playlist entitulada #estupronãoéculpadavítima. A ação gerou uma reação positiva no Twitter e agradecimentos e parabenizações foram feitas ao perfil da  plataforma.

Os outros destaques são os perfis do Youtube e de mídias tradicionais. Com a repercussão do incidente, diversos youtubers pronunciaram-se sobre o tema, seja especificamente sobre o caso ou não. O alto número de menções no Twitter acontece graças a uma ferramenta que publica automaticamente o ‘gostei’ dado pelo usuário em um determinado vídeo. O mesmo ocorre com perfis midiáticos como @jornalextra, @estadao e @folha: usuários compartilham através de uma ferramenta que indica a fonte via menção ao perfil do veículo.

Assim, os grafos representam tanto a grande rede de mobilização pela denúncia aos agressores construída por meio do Twitter quanto a intensa discussão sobre o caso, o que ele representa no contexto da sociedade brasileira e a popularização do conceito “cultura do estupro”, até então muito voltado somente para dentro dos círculos de ativismo feminista, cultura esta que deu base à divulgação debochada de um crime horrendo cometido contra não uma, mas todas nós mulheres.

Comentários misóginos e reafirmando a cultura do estupro estiveram presentes como ataques diretos à vítima, em especial no Facebook. À medida que surgem novas informações sobre a jovem, independentemente de sua veracidade, nota-se um crescimento nas justificativas para o crime baseadas no comportamento da mulher.  Pensamentos como “ela sabia no que estava se metendo”, “ela pediu por isso” ou “ela estava acostumada” foram frequentes e reforçam os dados levantados pela pesquisa “Tolerância social à violência contra mulheres”, divulgada pelo IPEA em 2014, no qual 58,5% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Entretanto, no dataset do Twitter, os comentários misóginos permanecem em número absolutamente minoritário, prevalecendo o debate didático sobre o crime de estupro nessa e nas mais diversas situações em que ele possa ocorrer. A cada dia, mais textos e tweets de apoio à vítima e contestatórios daqueles que a culpabilizam pelo crime sofrido viralizam e mostram o sistema de empatia e sororidade construída via redes sociais.

Diante das inúmeras mensagens de apoio e solidariedade compartilhadas, a jovem, vítima do estupro coletiva, agradeceu e escreveu no seu perfil do Fabebook: “Realmente pensei que seria julgada mal” e acrescentou: “Não dói o útero, e sim a alma”. Ao que depender de toda a rede mobilizada pelo apoio à vítima e denúncia aos agressores, a culpabilização da vítima não será tolerada e não haverá complacência com a cultura do estupro.

 

 

 

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