A Batalha do Vinagre: por que o #protestoSP não teve uma, mas muitas hashtags


Rede de Rts contendo a palavra "tarifa" no Twitter, coletados entre 17h às 23h50.

Rede de Rts contendo a palavra “tarifa” no Twitter, coletados entre 17h às 23h50.

Estranhei o porquê uma manifestação tão intensa – a da luta contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo – ser convocada na internet sem o uso de uma hashtag. Num primeiro momento, a percepção é que os movimentos no Brasil se inclinam e se articulam no Facebook, site que se tornou padrão de relacionamento social no país. Foi no “Face” que o evento “Terceiro Grande Ato contra o aumento da passagem” se viralizou: 28 mil perfis confirmados. Perfis não, pessoas – por mais que juridicamente se associe uma coisa a outra. Perfil é apenas um modo de ser sujeito, tal como indivíduo também é. Entre os 28 mil confirmados, obviamente, há inúmeros perfis de outros estados, algo super normal. Para dar força a um acontecimento, a regra do convívio dos “faces” no Brasil é bem simples: posso não ir, mas confirmo presença. A dinâmica do Facebook ilustra curiosamente a articulação rua e rede. Há aqueles que estão presente na primeira; há aqueles que estão na segunda. Os primeiros enunciam; Os segundos anunciam. Os primeiros, de dentro da mobilização, relatam. Os segundos, de dentro da rede, espalham e comovem. O “evento do Facebook” é uma espécie de desvio embutido na interface. O evento é algo que o próprio Facebook não sabe muito bem como controlar (você sabe onde fica a área de Eventos na interface do Facebook?).

O evento é o velho fórum de discussão que sempre aglutinou comunidades inteiras na rede, desde 1979, quando a Usenet veio à público. Claro que o lado negro dessa força eventual reside nas figuras que vão stalkear o fórum, para tentar identificar quem são “os líderes”, quem teria convocado o movimento, ou seja, quem se deve monitorar. Diferente das velhas BBS’s ou das comunidades do Orkut, os “Eventos do Facebook” têm como horizonte o desaparecimento. Ele acontece. E uma vez pertencido a ele, o perfil pode publicar conteúdo multimídia de todo tipo. Em situações de protestos intensos, o evento funciona como um mural noticioso das lutas e uma construção heterogênea de narrativas comuns, que podem ser curtidas (popularizadas), seguidas (valorizadas em termos de atenção), comentadas (discutidas e virarem polêmicas num espaço público) e, a mais radical da ação peer-to-peer, compartilhadas (difundidas pelos perfis). Numa análise muito rápida do evento Terceiro do Ato (hoje já virou Quarto Ato), uma curiosidade: os posts possuem, em geral, mais de duas linhas de texto. O que isso significa? Que os perfis estão emocionalmente engajados. Não há muito lugar para a “racionalidade habermasiana”, para teorizar. Só há lugar para a emoção n-1, ou seja, a emoção que deriva de um efeito dos nós da rede (n) que atravessam o perfil (1).

O erro da televisão e as interações no Twitter

Mas os canais n-1 não se reduzem ao Facebook. Pelo Twitter, um efeito curioso ocorria no começo da manifestação. Vários perfis acompanhavam, ao vivo, a cobertura da velha mídia televisiva. E os perfis compartilhavam links das transmissões televisivas embedadas nos portais, como os da GloboNews e da BandNews. Ontem, as emissoras de TV, sem saber, erraram. Com a cabeça no século XX, os diretores e editores da TV faziam uma emissão para audiência televisiva, enquanto que o “embed” do player nos portais ajudava os chamados “ativistas de sofá” a narrarem, em estado bruto, a ação grotesca da Polícia Militar na Rua da Consolação. As caras imagens aéreas ficavam na mão dos “confirmados na rede, mas não presentes nas ruas”. O hacking, feito pela própria estrutura de mídia que criminalizava a passeata (vândalos, baderna, “gente agressiva”, difamadores), se tornou fundamental para o combate aos “reacionários do sofá” – que são perfis pagos pelo poder para ficar desqualificando os protestos nas ruas através da internet. A televisão, naquele momento, sendo vista por adolescentes e idosos (o horário das 18h às 19h é deles) e a internet sendo ocupada pelos ‘confirmados e presentes na rua” e pelos “confirmados e presentes na rede”.

Datena é "supreendido" com resultado da enquete para lá de dirigida pela emissora de TV. É a TV sendo ocupada pela sua segunda tela, a internet. (Foto de José Geraldo Couto, no facebook)

Datena é “supreendido” com resultado da enquete para lá de dirigida pela emissora de TV. É a TV sendo ocupada pela sua segunda tela, a internet. (Foto de José Geraldo Couto, no facebook)

Essa disposição de um evento sem líderes revelou-se o avesso do #existeAmorEmSP (acontecimento fantástico contra o sistema político neoconservador paulista) – interpretado, posteriormente, como um movimento patrocinado pela Administração Haddad. Agora o que se via era uma multiplicidade de hashtags: #passelivre #contraoaumento #vemprarua #changebrazil #tarifazero #indignação #occupySP #protestoSP #13jSP. Diferentes movimentos dentro do movimento. A isso se denomina, em linguagem clara e simples, de Povão. Tratados como multidão (no campo teórico político negriano) esses diferentes movimentos não se denominam assim. Denominam-se de Povão, o verdadeiro léxico potente trazido da resistência popular brasileira. Chega de devir! Vamos falar é de Futuro mesmo! Chega de multidão, vamos falar é de Povão mesmo!

O Povão no Twitter produziu, entre 17h e 23h50, mais de 17 mil tweets contendo a palavra “tarifa”. No lugar de uma hashtag, o que esquentou mesmo foram as chamadas keywords, palavras como protesto, jornalista, ônibus, rua, manifestantes, vinagre, bomba, enfim, todo um múltiplo universo e rico vocábulo que explicava os sentidos predominantes na Batalha da Consolação, quando os PMs iniciaram o processo de encurralar o Povão que seguia em passeata, usando bombas, gás lacrimogêneo e tiros de borracha. Como se pode ver, o interesse no Google pela tag “tarifa ônibus” chegou ao topo da métrica do Google Trends, levando em consideração os últimos 30 dias.

 

Fiz a plotagem da rede de RTS (republicações de tweets) usando o layout Yifan HU (que distribui os nós, de modo homogêneo, a partir do tamanho das arestas – ou proximidade de relações, criando uma centralidade de conexões) e o filtro estatístico Eigenvector Centrality, um modo de calcular onde se encontra os atores mais centrais (localizados mais próximos dos demais),considerando-se toda a estrutura da rede. Deste modo, quando alguém republica um perfil X, cria-se uma relação (no grafo, as linhas). Quando muitos outros fazem a mesma operação, o perfil X ganha uma posição espacial na rede. Na prática, se um tweet é muito republicado por perfis jornalísticos, ficará próximos destes. A força que cria a posição política não deriva do um desejo de perfil, mas de como este é apropriado pela rede. “É o outro que cria a perspectiva”. A centralidade de autovetor é um modo de compreender a posição de um perfil e sua relação com outros espaços da rede. Quanto mais relações com outras subredes, mais centralidade de autovetor possui um dado perfil, ou seja, mais força é atraída por ele. Central é aquele que consegue atrair uma intensidade de relações. Os dez perfis com mais centralidade de autovetor na conversação, ontem, sobre o movimento contra o aumento da tarifa de ônibus de SP foram: @estadao, @silvanabit, @marcelorubens, @pecesiqueira, @jeanwyllis_real, @leorossatto, @choracuica, @gaiapassarelli, @g1 e @tavasconcellos.

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Rede de RTs no Twitter. Perfis com mais centraldiade de autovetor atraem diferentes relações no Twitter, fixando os sentidos predominantes na rede contra o aumento da tarifa de ônibus de São Paulo.

Antes da Polícia, depois da Polícia

O perfil @estadao foi um dos mais ativos na divulgação atenta dos acontecimento das ruas, atraindo muitos usuários na rede. Já @SilvanaBit atraiu uma força relacional muito em função de um único tweet, que foi republicado 706 vezes. “Seis repórteres de um único jornal feridos em manifestação contra da tarifa de ônibus. Nem entre correspondentes de guerra isso acontece”. Já o escritor @marcelorubens teve republicações de diferentes nós inscritos na topologia da rede, ao afirmar que a pancadaria promovida pelos PMs fazia com que o protesto se tornasse algo com abrangência muito maior que a questão tarifária. “Esses protestos ñ são apenas pra baixar tarifa de ônibus, mas contra a violência com q o Estado trata o cidadão, sem resolver a violência”. Já o blogueiro @pecesiqueira (muito lido entre adolescentes) fará ironia com a prisão de jornalista portando vinagre. “Vinagre PUTA ARMA PERIGOSA RT @Estadao SP: repórter da Carta Capital foi detido em protesto por estar com vinagre http://migre.me/f0rLF”.

O deputado Jean Wyllis esteve atento a conversação na rede, tendo o cuidado de desqualificar (sobretudo os setores da imprensa) aqueles que tentavam associar os manifestantes ao rótulo de sujeitos raivosos, agressivos e criminosos. Ele teve uma atuação de qualificação da causa política, e assim como o @estadao, esteve presente acompanhando todo o protesto, observando atentamente o fluxo daquilo que era noticiado por ativistas na rua e pela imprensa online. Seu tweet que atraiu diferentes redes foi uma crítica à declaração dada pela PM ao Estadão: “RT @jeanwyllys_real: Vão matar?! RT “@Estadao: PM: situação está saindo do controle: ‘Não nos responsabilizamos mais pelo que acontecerá’ http://migre.me/f0uqZ”.

Um dos elementos mais interessantes da repercussão dos protestos de rua na rede será a emergência de perfis que não possuem grade popularidade na internet (chamados nós pobres), mas com capacidade de afirmar algo que se espalha na rede, capaz de construir uma perspectiva de muitos (sem que, com isso, se reverta em aumento de seguidores e popularidade para o autor da mensagem original). @LeoRossatto é um caso desse tipo, ao publicar “A tarifa virou a menor das questões agora. Os próximos protestos precisam ser, antes de tudo, pela liberdade de protestar.”, viu sua mensagem ganhar ares de slogan em função de uma afirmativa que muitos gostariam de ter dito naquele momento da história (quando da forte ação policial sobre os ativistas). O mesmo caso ocorreu com @choracuica, que publicou (sendo retuitada 190 vezes): “não é mais sobre a tarifa. foda-se a tarifa. isso ficou muito maior que a questão da tarifa.”. E também com a mensagem de @gaiapassarelli: “há algo grande acontecendo e é menos sobre aumento de tarifa e mais sobre tomar posição. todo mundo deveria prestar atenção”. E ainda com @tavasconcellos: “RT @tavasconcellos: não é mais uma discussão sobre tarifa. transporte. baderna. sobre nada disso. é sobre o direito de se manifestar por qualquer causa”.

Essas quatro mensagens, somadas, são as que mais obtiveram republicação no Twitter (quase 1 mil republicações). E ilustra, do ponto de vista político, que o estado de indignação se ampliou e que o movimento vai se desdobrar em diferentes marchas e atos, o que já se mostra evidente, com a convocação para a Marcha do Vinagre (sábado) e o Ato 5 contra o aumento da Passagem (para a próxima segunda). Geraldo Alckmin e Fernando Haddad são vistas tendo a mesma perspectiva e não conta mais com a visão hegemônica de que o protesto é coisa de gente violenta e “que odeia e não ama”. A bipolaridade tucana x petista se tornou um blocão de sentido que empurra, ambos, para o mesmo lugar: o do poder da elite paulistana. Muito disso foi provocada pela ação truculenta da PM, como podemos ver, ao analisar a rede temporal do movimento. Num primeiro momento a movimentação era tímida na rede. E ganhou lastro com o momento de “fortes emoções” com a Polícia.

Para plotar a rede temporal, o que eu fiz? Exportei o arquivo csv com os tweets que possuiam a tag “tarifa” (embora a movimentação tenha sido muito maior no Twitter, pois, como eu falei, os perfis publicaram várias informações sem hashtag e sem usar a palavra tarifa). No meu dataset, aglutinamos quase 20 mil tweets com a palavra tarifa. Rodei o arquivo no R e Igraph, separando o arquivo de grafo (graphml) em RTs e Ats (menções). O scriptR que usamos traz o rt.time (o tempo da publicação do tweet) para a tabela. Em seguida, plotei o arquivo rt.graphml no Gephi para visualizar a rede. Nele, usei o plugin Gephi Streaming, para temporalizar a rede. O resultado é impressionante. Antes da ação policial a rede se aquecia, e o foco era o relato da passeata. Depois da ação policial, a rede esquentou totalmente. E pautou as conversações de inúmeros perfis, tornando o fato ainda mais público. E a pressão contra os gestores públicos cresceu.

Vejam:

Repercussão da passeata dos manifestantes contra o aumento da tarifa de ônibus,. Momentos antes de confronto com a Polícia Militar.

Repercussão da passeata dos manifestantes contra o aumento da tarifa de ônibus,. Momentos antes de confronto com a Polícia Militar.

Em seguida, há o conflito dos setores policiais com os ativistas, na subida da Consolação. O Confronto se inicia e a temperatura da rede sobe:

Rede no Twitter explode de interações a partir do conflito com setores policiais.

Rede no Twitter explode de interações a partir do conflito com setores policiais.

Tentei fazer algo rápido sobre como a rua é capaz de alimentar a rede de relatos e mensagens que ganham vastidão em função do trabalho cooperativo de perfis, que assumem comportamento atento aos fatos nas ruas, publicando dela e da rede. Esse foi um primeiro artigo. O trabalho continua.

PS: Esse trabalho possui a cooperação da professora Raquel Recuero e do professor Marco Toledo.

 

 

 

 

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