A narrativa nas redes sociais da internet

31 de dezembro de 2010

por Labic


Artigo publicado no livro Princípios inconstantes, editado pelo Itaú Cultural, e ampliado para publicação na Revista Lugar Comum.

Fábio Malini
(o artigo abaixo é apenas uma parte do texto original )

.
1994. Após um ano em que Tim Berners-Lee apresenta ao mundo o seu projeto World Wide Web, a internet começava a mudar. Até então ela havia se tornado numa espécie de rede intergaláctica de cientistas, nerds e de usuários que se divertiam através das bulletin board system (bbs), comunidades virtuais onde se liam mensagens – sob um fundo preto chapado – sobre diferentes temas, de acordo com o gosto do freguês. Tudo era feio e simples. Porém, muito divertido. As bbs podiam ser criada por quaisquer um que se arriscasse a pegar a sua poupança, comprar uma linha telefônica, um computador Pentium 386, baixar o software spitfire, ficar dias lendo tutoriais, para até chegar o grande momento em que criava online o seu “clube bbs”. Para se conectar a ele, cada sócio pagava uma graninha, que geralmente era revertida na compra de equipamentos para tornar ainda melhor a performance da rede. Nessa internet de raiz, todo mundo podia ser, em tese, uma UOL, um Terra, uma AOL.

Contudo, as bbs se foram. E, com a popularização da web, em 1994, logo surgiu o site. Agora era mais atraente ficar num chat animado – e com design em cores – do que ficar naquela tela preta do DOS, com sua chata interação através de comandos de teclado. E foi em 1994 que um caboclo chamado Justin Hall, estudante de jornalismo em São Francisco e estagiário da revista Wired, decidiu publicar em seu site,  Justin´s Link, relatos da sua vida cotidiana. Escrevia coisas como o suicídio do pai até às suas aventuras amorosas através desse log (diário) virtual. Hall criava a partir dali um dispositivo de escape para uma solidão típica daquele ano recheado a Guerra da Bósnia, eleições na África do Sul e genocídio em Ruanda. Mais. Ele criava uma forma de constituir uma presença online, estabelecendo relações entre aqueles que compartilhavam e consumiam vida através, agora, da web. Porque a web, diferente das bbs e sua noção de clube, onde entra quem pode e quem curte “aquele” tema, é um ambiente totalmente aberto, totalmente público.

blog: onde tudo começou

Essa publicização da intimidade revelava um caminho catártico de constituição de si. O site de Justin trazia vida real a ele, mesmo que, na aparência, fosse ele que levasse a sua vida real aos outros.  Foi imediato o aparecimento de toda uma comunidade virtual em torno dos seus relatos. Era aquele devir bbs, de compartilhamento de ideias, de interação mútua e de participação, que se afirmava agora numa cultura nova, baseada no mito da transparência total. Justin Hall tornava-se ali o pai fundador do diário virtual.

O termo blog ganhou esse nome somente em 1997, a partir da junção das palavras log (inventada online por Justin) e web (inventada por Berners-Lee). Das duas nasceu o acrônimo: blog, o primeiro gênero de publicação puro sangue da internet. De forma intimista, blogueiros praticavam o principal elemento da cultura da web: o hipertexto. Comentário mais link, eis o dna de qualquer texto da blogosfera até hoje. Esse padrão textual revelou outra coisa. Blogs nasciam como uma prática cultural de seleção e filtragem do que havia de melhor no mar infinito e excessivo de informação da internet. O valor do blog reside, primeiro, na sua capacidade de relatar, de modo intimista, uma informação (seja um caso ou um link).

Mas o avanço da cultura blogueira não parava aí. Em 1999, nasce o Blogger, site que disponibiliza aos usuários da web um sistema automático para a publicação de posts. Agora não era preciso saber html para publicar, era só se logar ao Blogger, escrever um título, um texto e apertar a tecla enviar. Para melhorar ainda mais, hackers desenvolvem um programa de comentários para blogs. Ninguém mais agora escrevia apenas para si. Agora também para outros, que comentavam, republicavam e repudiavam os posts.

Fim do monopólio da imprensa

O resultado mais impactante disso, para além dos mais de 100 milhões de blogs criados adiante e o fim da ladainha do “não tenho quem me publique”, foi a perda do monopólio da narração sobre o passado pertencentes aos grupos editoriais e de comunicação. Porque não só os usuários podem conectar qualquer informação antiga que esteja na rede com uma atual, como eles podem determinar o alcance de uma informação atual, replicando-a por diferentes interfaces.

A comunicação partilhada nas interfaces coletivas de parceria blogueira reposiciona o tipo de passado que importa na decisão de ação. A mediação da publicidade agora se via confrontada com a mediação das interações e recomendações dos usuários e blogueiros. Não é à toa que o intelectual, o crítico e o jornalista foram as primeiras figuras a serem colocadas em cheque por essa nova ordem textual. Os três detinham por séculos o poder de representar a informação e a ideia, a partir de uma produção baseada na produção da verdade por meio do isolamento. Logo as corporações de mídia impuseram a campanha do “olhe, mas não toque”, tentando ao máximo descredenciar e desacreditar esse novos agentes da informação. No Brasil, o ápice dessa guerra pela posse da narrativa da vida social ocorre em 2008, quando o grupo Estado investe em campanha publicitária para afirmar que blogueiro e macaco eram todos iguais. Anos depois, o mesmo grupo, como qualquer empresa de mídia online, tem sua homepage povoada por dezenas de blogueiros.

Durante a primeira década do século XXI, o blog se tornou ainda mais uma linguagem viralata. A cultura da incorporação (embed) e a da classificação (tagging) trazida pelas mídias sociais (Youtube, Flickr, SoundCloud, Slideshare e tantos outros dispositivos da web 2.0) marcaram o período.  E fizeram com que o post se tornasse ainda mais multimídia e interconectado a outros conteúdos e sites. Agora uma crônica é postada junto com uma trilha sonora, ou vice-versa. Agora uma foto faz parte da estrutura de um poema (senão é o próprio). Agora o usuário pode ir lá dentro do áudio e deixar o comentário sobre aquele instante sonoro. Agora o autor pode classificar o seu texto como “mpb” que o sistema coloca-o “junto misturado” a tudo que foi publicado sobre o tema, de maneira que a leitura de um post conduz a um outro, que se conecta a um outro, dando ao texto uma possibilidade de conexões que obedece ao seu universo semântico (e menos ao universo do gênero, quase sempre estabelecido por um outro que não o autor), melhorando o consumo de informação para além daquela navegação escapista típica da hipertextualidade da web 1.0.

Em suma, o blog passou a cruzar-se com todo tipo de linguagem, na dura tarefa de, como Perseu, se manter humano mesmo que os eufóricos queiram torná-lo divino. E o post se disseminou como a forma mais bem (in)acabada da hibridização da linguagem online. Postar virou sinônimo de escrever. Mas escrever em rede.

Essas proposições abertas na linguagem e o estado permanente de presença do escritor-blogueiro rompem o “paradigma da Olivetti”, simbolizada pelo escritor isolado e mergulhado em rascunhos e numa desordem criativa, e coloca ao escritor online um novo conflito estético: é possível criar o tempo inteiro e num regime de alta visibilidade?

Parece-me que uma dos grandes dificuldades dos escritores atuais está no fato de que a inter-relação cognitiva e afetiva com os leitores através do blog é motivo para criação de mais histórias, de modo que quanto mais entradas são produzidas, mais são reinventadas e compartilhadas na rede, tornando o escritor ainda mais consumido. Como o artista vive do público e da atenção gerada neste, o escritor se vê livre da administração da escassez da atenção imposta pelo mercado editorial de papel, mas se encontra dramaticamente envolvido, ao mesmo tempo, pelo desejo contraditório de ser sempre visto pelos fãs online (daí os escritores terem além de blogs, perfis em uma série de redes sociais online) e ao mesmo tempo de buscar um tempo de recolhimento para amadurecer a sua linguagem, através da busca de novas referências, novas leituras e novas formas de escrita. O autor online se defronta, em relação a épocas anteriores, com a dificuldade de administrar a sua atenção e não a do público para com ele.

Histórias compartilhadas

Nessa primeira década do século XXI, a blogosfera passou por um período de expansão, através da agregação de novos dispositivos que radicalizam essa sina de transformação das pessoas online em portais de comunicação, como analisava Rheinghold (2004). Agora qualquer pessoa com acesso à internet pode ter em seu blog de um canal de vídeos ao vivo produzidos diretamente de telefones celulares a uma galeria de imagens e vídeos, tudo facilitado pela criação de comunidades que geram templates e plugins dos mais diversificados possíveis, fazendo com que aquele formato tradicional de página com layout pré-fabricado e com funções bem delimitadas se torne agora coisa do passado.

Além dos blogs incorporarem a cultura do embed, do widgets,  streaming e mobilidade, ebuscam  agora formar, em software, mecanismos de inter-relação através do conceito de “seguidores”. A invenção do Tumblr e Twitter significou um novo passo na cutlura blogueira. Antes praticamente se desconhecia o público do blog, e a inter-relação com outros blogueiros se fazia através da barra lateral desses sites, onde se listava os links dos blogs parceiros. Com esses dois novos dispositivos blogueiros, tanto o público, quanto o blogueiro virou seguidor, estando e criando um emaranhado de clusters de publicações online, agora transmutadas sob o nome de perfis, facilitando a republicações, respostas (reply) , curtições e comentários de suas atualizações. Já existentes nos blogs como ferramentas de organização de conteúdos, as tags se transmutaram em hashtags, agregando todos os relatos sobre determinados assuntos, gerando memórias dos fatos cotidianos e possibilitando o ranqueamentos dos assuntos do momento, transformando assim relatos fragmentados em notícias gerais e comuns.

Ao observar mais atentamente o Twitter e o Facebook, verificaremos que eles têm como característica a cultura open source dos blogs, pela  maneira como criam suas espacialidades (recheadas de aplicações fabricadas pelos próprios usuários e incorporadas às suas interfaces). São verdadeiras fábricas sociais, como bem analisa o filosofo italiano Antonio Negri, ao se debruçar como o cérebro se tornou a grande força produtiva de nosso tempo. Mas, nesses dispositivos, é sobretudo a noção do tempo advinda dos blogs que faz organizar suas máquinas semióticas, à medida que tem o kairós como tempo, um tempo sempre da oportunidade, do descontínuo. É esse tempo do ao vivo que se traduz na interface da cronologia inversa, que pede o mais recente no topo, eis o dna blogueiro nos dispositivos de mídias e redes sociais.

Nesse kairós virtual, não há possibilidade de edição, de controle, de replay. É curioso ouvir: “a minha timeline está cheia”. Curioso porque a linha do tempo é, na verdade, o seu, mas principalmente, o tempo do outro. Assim, recebemos do outro o tempo de sua vida, inscrita à nossa própria timeline, fazendo com que a narração de si esteja emaranhada à multiplicidade narrativa daqueles que seguimos online e vice-versa, apesar de, por muitas vezes, sentir que estamos a criar um reality show de nossas próprias vidas, ativando um dos mais complexos problemas psíquicos atuais: a tautologia de si e dos outros.

Uma radical experiência de liberdadade

Mas isso não pode embalar somente o catastrofismo psicologizante. Porque esse kairós virtual é fundador de uma radical experiência de liberdade de expressão, por possibilitar a criação de outros enunciados e opiniões que estão para além do mercado de mídia e dos comunicados oficiais.

O surgimento das hashtags explicam, em parte, o aparecimento das narrativas compartilhadas, em que um universo infinito de usuários, ao utilizar o símbolo #, se lançam numa conversação agrupada pelo Twitter, em que todos possuem papéis específicos, com a consciência que estão a participar de uma contação de história única, porém múltipla. A hashtag acaba por virar um link que armazena tudo que foi publicado sobre determinado assunto/história (#). Casos como #paznorio,  #fichalimpa, #calabocagalvão, #bolinhadepapel, #ondaverde, #morrediabo, são apenas algumas das histórias construídas de forma conjunta pelos usuários de internet, tipicamente hipertextualizadas, multimidiáticas, interativas e comunitaristas, ou seja, fabricadas com as marcas registradas da narratologia digital.

A narrativa compartilhada é sempre permeada de histórias paralelas, de idas e vindas, de agregações de sentido, de confrontos de personagens (perfis), que só faz alastrar as ambiências em que o fato é vivido, transformado e tornado público. À diferença da narrativa jornalística, marcada pela autenticação dos fatos, hierarquização de fontes, predomínio do passado, busca de uma enunciação à distância do fato narrado e repetição de versões únicas; a narrativa colaborativa p2p é o relato feito por uma multiplicidade de perfis na internet que portam o tempo da linha do tempo (o agora), assumem o franco falar como regra para se alcançar a verdade,  identificam-se como sujeitos unidos ao acontecimento, têm a republicação como estratégia de alargamento de audiência, o rumor como grande antagonista e a dissidência como elemento principal da formação do enredo geral da História.

É dentro dessa historiografia menor, inscrita em hashtags, tweets, posts e memes online, totalmente profusas e polissêmicas, que penso ser importante interpretar o que autores insistem em denominar de “jornalismo colaborativo” ou “jornalismo participativo” – termos que revelam que a prática da imprensa é algo hoje internalizada em qualquer cidadão que tem seu canal de comunicação online. Contudo, na boa fé, esses autores reduzem a colaboração ao jornalismo e o jornalismo à colaboração. As narrativas compartilhadas não se reduzem ao jornalismo, mas atravessam-no, provocando uma guerra de narrativas, uma guerra pela atualização do presente, algo que, antes, era função única do “jornal”.

1994. Após um ano em que Tim Berners-Lee apresenta ao mundo o seu projeto World Wide Web, a internet começava a mudar. Até então ela havia se tornado numa espécie de rede intergaláctica de cientistas, nerds e de usuários que se divertiam através das bulletin board systemspitfire, ficar dias lendo tutoriais, para até chegar o grande momento em que criava online o seu “clube bbs”. Para se conectar a ele, cada sócio pagava uma graninha, que geralmente era revertida na compra de equipamentos para tornar ainda melhor a performance da rede. Nessa internet de raiz, todo mundo podia ser, em tese, uma UOL, um Terra, uma AOL. (bbs), comunidades virtuais onde se lia mensagens – sob um fundo preto chapado – sobre diferentes temas, de acordo com o gosto do freguês. Tudo era feio e simples. Porém, muito divertido. As bbs podiam ser criada por quaisquer um que se arriscasse a pegar a sua poupança, comprar uma linha telefônica, um computador Pentium 386, baixar o software


Contudo, as bbs se foram. E, com a popularização da web, em 1994, logo surgiu o site. Agora era mais atraente ficar num chat animado – e com design em cores – do que ficar naquela tela preta do DOS, com sua chata interação através de comandos de teclado. E foi em 1994 que um caboclo chamado Justin Hall, estudante de jornalismo em São Francisco e estagiário da revista Wired, decidiu publicar em seu site, Justin´s Link, relatos da sua vida cotidiana. Escrevia coisas como o suicídio do pai até às suas aventuras amorosas através desse log (diário) virtual. Hall criava a partir dali um dispositivo de escape para uma solidão típica daquele ano recheado a Guerra da Bósnia, eleições na África do Sul e genocídio em Ruanda. Mais. Ele criava uma forma de constituir uma presença online, estabelecendo relações entre aqueles que compartilhavam e consumiam vida através, agora, da web. Porque a web, diferente das bbs e sua noção de clube, onde entra quem pode e quem curte “aquele” tema, é um ambiente totalmente aberto, totalmente público.


Essa publicização da intimidade revelava um caminho catártico de constituição de si. O site de Justin trazia vida real a ele, mesmo que, na aparência, fosse ele que levasse a sua vida real aos outros. Foi imediato o aparecimento de toda uma comunidade virtual em torno dos seus relatos. Era aquele devir bbs, de compartilhamento de ideias, de interação mútua e de participação, que se afirmava agora numa cultura nova, baseada no mito da transparência total. Justin Hall tornava-se ali o pai fundador do diário virtual.


O termo blog ganhou esse nome somente em 1997, a partir da junção das palavras log (inventada online por Justin) e web (inventada por Berners-Lee). Das duas nasceu o acrônimo: blog, o primeiro gênero de publicação puro sangue da internet. De forma intimista, blogueiros praticavam o principal elemento da cultura da web: o hipertexto. Comentário mais link, eis o dna de qualquer texto da blogosfera até hoje. Esse padrão textual revelou outra coisa. Blogs nasciam como uma prática cultural de seleção e filtragem do que havia de melhor no mar infinito e excessivo de informação da internet. O valor do blog reside, primeiro, na sua capacidade de relatar, de modo intimista, uma informação (seja um caso ou um link).


Mas o avanço da cultura blogueira não parava aí. Em 1999, nasce o Blogger, site que disponibiliza aos usuários da web um sistema automático para a publicação de posts. Agora não era preciso saber html para publicar, era só se logar ao Blogger, escrever um título, um texto e apertar a tecla enviar. Para melhorar ainda mais, hackers desenvolvem um programa de comentários para blogs. Ninguém mais agora escrevia apenas para si. Agora também para outros, que comentavam, republicavam e repudiavam os posts.


O resultado mais impactante disso, para além dos mais de 100 milhões de blogs criados adiante e o fim da ladainha do “não tenho quem me publique”, foi a perda do monopólio da narração sobre o passado pertencentes aos grupos editoriais e de comunicação. Porque não só os usuários podem conectar qualquer informação antiga que esteja na rede com uma atual, como eles podem determinar o alcance de uma informação atual, replicando-a por diferentes interfaces.


A comunicação partilhada nas interfaces coletivas de parceria blogueira reposiciona o tipo de passado que importa na decisão de ação. A mediação da publicidade agora se via confrontada com a mediação das interações e recomendações dos usuários e blogueiros. Não é à toa que o intelectual, o crítico e o jornalista foram as primeiras figuras a serem colocadas em cheque por essa nova ordem textual. Os três detinham por séculos o poder de representar a informação e a ideia, a partir de uma produção baseada na produção da verdade por meio do isolamento. Logo as corporações de mídia impuseram a campanha do “olhe, mas não toque”, tentando ao máximo descredenciar e desacreditar esse novos agentes da informação. No Brasil, o ápice dessa guerra pela posse da narrativa da vida social ocorre em 2008, quando o grupo Estado investe em campanha publicitária para afirmar que blogueiro e macaco eram todos iguais. Anos depois, o mesmo grupo, como qualquer empresa de mídia online, tem sua homepage povoada por dezenas de blogueiros.


Durante a primeira década do século XXI, o blog se tornou ainda mais uma linguagem viralata. A cultura da incorporação (embed) e a da classificação (tagging) trazida pelas mídias sociais (Youtube, Flickr, SoundCloud, Slideshare e tantos outros dispositivos da web 2.0) marcaram o período. E fizeram com que o post se tornasse ainda mais multimídia e interconectado a outros conteúdos e sites. Agora uma crônica é postada junto com uma trilha sonora, ou vice-versa. Agora uma foto faz parte da estrutura de um poema (senão é o próprio). Agora o usuário pode ir lá dentro do áudio e deixar o comentário sobre aquele instante sonoro. Agora o autor pode classificar o seu texto como “mpb” que o sistema coloca-o “junto misturado” a tudo que foi publicado sobre o tema, de maneira que a leitura de um post conduz a um outro, que se conecta a um outro, dando ao texto uma possibilidade de conexões que obedece ao seu universo semântico (e menos ao universo do gênero, quase sempre estabelecido por um outro que não o autor), melhorando o consumo de informação para além daquela navegação escapista típica da hipertextualidade da web 1.0.


Em suma, o blog passou a cruzar-se com todo tipo de linguagem, na dura tarefa de, como Perseu, se manter humano mesmo que os eufóricos queiram torná-lo divino. E o post se disseminou como a forma mais bem (in)acabada da hibridização da linguagem online. Postar virou sinônimo de escrever. Mas escrever em rede.


Essas proposições abertas na linguagem e o estado permanente de presença do escritor-blogueiro rompem o “paradigma da Olivetti”, simbolizada pelo escritor isolado e mergulhado em rascunhos e numa desordem criativa, e coloca ao escritor online um novo conflito estético: é possível criar o tempo inteiro e num regime de alta visibilidade?


Parece-me que uma dos grandes dificuldades dos escritores atuais está no fato de que a inter-relação cognitiva e afetiva com os leitores através do blog é motivo para criação de mais histórias, de modo que quanto mais entradas são produzidas, mais são reinventadas e compartilhadas na rede, tornando o escritor ainda mais consumido. Como o artista vive do público e da atenção gerada neste, o escritor se vê livre da administração da escassez da atenção imposta pelo mercado editorial de papel, mas se encontra dramaticamente envolvido, ao mesmo tempo, pelo desejo contraditório de ser sempre visto pelos fãs online (daí os escritores terem além de blogs, perfis em uma série de redes sociais online) e ao mesmo tempo de buscar um tempo de recolhimento para amadurecer a sua linguagem, através da busca de novas referências, novas leituras e novas formas de escrita. O autor online se defronta, em relação a épocas anteriores, com a dificuldade de administrar a sua atenção e não a do público para com ele.


Nessa primeira década do século XXI, a blogosfera passou por um período de expansão, através da agregação de novos dispositivos que radicalizam essa sina de transformação das pessoas online em portais de comunicação, como analisava Rheinghold (2004). Agora qualquer pessoa com acesso à internet pode ter em seu blog de um canal de vídeos ao vivo produzidos diretamente de telefones celulares a uma galeria de imagens e vídeos, tudo facilitado pela criação de comunidades que geram templates e plugins dos mais diversificados possíveis, fazendo com que aquele formato tradicional de página com layout pré-fabricado e com funções bem delimitadas se torne agora coisa do passado.


Além dos blogs incorporarem a cultura do embed, do widgets, streaming e mobilidade, ebuscam agora formar, em software, mecanismos de inter-relação através do conceito de “seguidores”. A invenção do Tumblr e Twitter significou um novo passo na cutlura blogueira. Antes praticamente se desconhecia o público do blog, e a inter-relação com outros blogueiros se fazia através da barra lateral desses sites, onde se listava os links dos blogs parceiros. Com esses dois novos dispositivos blogueiros, tanto o público, quanto o blogueiro virou seguidor, estando e criando um emaranhado de clusters de publicações online, agora transmutadas sob o nome de perfis, facilitando a republicações, respostas (reply) , curtições e comentários de suas atualizações. Já existentes nos blogs como ferramentas de organização de conteúdos, as tags se transmutaram em hashtags, agregando todos os relatos sobre determinados assuntos, gerando memórias dos fatos cotidianos e possibilitando o ranqueamentos dos assuntos do momento, transformando assim relatos fragmentados em notícias gerais e comuns.


Ao observar mais atentamente o Twitter e o Facebook, verificaremos que eles têm como característica a cultura open source dos blogs, pela maneira como criam suas espacialidades (recheadas de aplicações fabricadas pelos próprios usuários e incorporadas às suas interfaces). São verdadeiras fábricas sociais, como bem analisa o filosofo italiano Antonio Negri, ao se debruçar como o cérebro se tornou a grande força produtiva de nosso tempo. Mas, nesses dispositivos, é sobretudo a noção do tempo advinda dos blogs que faz organizar suas máquinas semióticas, à medida que tem o kairós como tempo, um tempo sempre da oportunidade, do descontínuo. É esse tempo do ao vivo que se traduz na interface da cronologia inversa, que pede o mais recente no topo, eis o dna blogueiro nos dispositivos de mídias e redes sociais.


Nesse kairós virtual, não há possibilidade de edição, de controle, de replay. É curioso ouvir: “a minha timeline está cheia”. Curioso porque a linha do tempo é, na verdade, o seu, mas principalmente, o tempo do outro. Assim, recebemos do outro o tempo de sua vida, inscrita à nossa própria timeline, fazendo com que a narração de si esteja emaranhada à multiplicidade narrativa daqueles que seguimos online e vice-versa, apesar de, por muitas vezes, sentir que estamos a criar um reality show de nossas próprias vidas, ativando um dos mais complexos problemas psíquicos atuais: a tautologia de si e dos outros.


Mas isso não pode embalar somente o catastrofismo psicologizante. Porque esse kairós virtual é fundador de uma radical experiência de liberdade de expressão, por possibilitar a criação de outros enunciados e opiniões que estão para além do mercado de mídia e dos comunicados oficiais.


O surgimento das hashtags explicam, em parte, o aparecimento das narrativas compartilhadas, em que um universo infinito de usuários, ao utilizar o símbolo #, se lançam numa conversação agrupada pelo Twitter, em que todos possuem papéis específicos, com a consciência que estão a participar de uma contação de história única, porém múltipla. A hashtag acaba por virar um link que armazena tudo que foi publicado sobre determinado assunto/história (#). Casos como #paznorio, #fichalimpa, #calabocagalvão, #bolinhadepapel, #ondaverde, #morrediabo, são apenas algumas das histórias construídas de forma conjunta pelos usuários de internet, tipicamente hipertextualizadas, multimidiáticas, interativas e comunitaristas, ou seja, fabricadas com as marcas registradas da narratologia digital.


A narrativa compartilhada é sempre permeada de histórias paralelas, de idas e vindas, de agregações de sentido, de confrontos de personagens (perfis), que só faz alastrar as ambiências em que o fato é vivido, transformado e tornado público. À diferença da narrativa jornalística, marcada pela autenticação dos fatos, hierarquização de fontes, predomínio do passado, busca de uma enunciação à distância do fato narrado e repetição de versões únicas; a narrativa colaborativa p2p é o relato feito por uma multiplicidade de perfis na internet que portam o tempo da linha do tempo (o agora), assumem o franco falar como regra para se alcançar a verdade,  identificam-se como sujeitos unidos ao acontecimento, têm a republicação como estratégia de alargamento de audiência, o rumor como grande antagonista e a dissidência como elemento principal da formação do enredo geral da História.


É dentro dessa historiografia menor, inscrita em hashtags, tweets, posts e memes online, totalmente profusas e polissêmicas, que penso ser importante interpretar o que autores insistem em denominar de “jornalismo colaborativo” ou “jornalismo participativo” – termos que revelam que a prática da imprensa é algo hoje internalizada em qualquer cidadão que tem seu canal de comunicação online. Contudo, na boa fé, esses autores reduzem a colaboração ao jornalismo e o jornalismo à colaboração. As narrativas compartilhadas não se reduzem ao jornalismo, mas atravessam-no, provocando uma guerra de narrativas, uma guerra pela atualização do presente, algo que, antes, era função única do “jornal”.

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