Reagregando o social #1 Multidão assumida


Multidão assumida: compreendendo os movimentos tecnopolíticos com a teoria ator-rede

“Em primeiro lugar, as ações aparecem sempre num relato como responsáveis por um feito, ou seja, como algo que afeta um estado de coisas, transformando As em Bs pela prova dos Cs” (Latour, 84)

Neste segundo capítulo de “Reagregando Social”, de nome “Segunda fonte de incerteza: a ação é assumida”, Bruno Latour traz o debate sobre a abordagem das ciências sociais sobre o ‘social’. Ele chama atenção para o cuidado com qualquer explicação social, pois segundo ele, diversas váriaveis ocultas foram empacotadas de tal maneira que mal sobrou espaço para ver o que está lá dentro.

E é com um grande cuidado que Latour vai conversar conosco sobre a ação e nos apresentar a teoria ator-rede (ANT em inglês ou TAR em português). Ele afirma como uma segunda fonte de incerteza, a ação como algo não transparente. Sendo assim, “a ação não ocorre sob o pleno controle da consciência; a ação deve ser encarada, antes, como um nó, uma ligadura, um conglomerado de muitos e surpreendentes conjuntos de funções que só podem ser desemaranhados aos poucos. É essa venerável fonte de incerteza que desejamos restaurar com a bizarra expressão ator-rede.” (Latour, 72)

Não faltam exemplos durante o capítulo para ilustrar essa fonte de incerteza, esses questionamentos que ele faz repetidamente sobre o que nos leva a agir de alguma maneira. Desde uma aparente ação coletiva na bolsa de valores, quando dez milhões de outros acionistas acabaram de vender as mesmas ações; até uma festinha na escola, onde todos os pais aparecem vestidos com a mesma roupa, as mesmas joias e as mesmas formas de articular palavras. A pergunta fica: O que nos transforma na mesma coisa ao mesmo tempo? Latour vai responder que essa “ação é assumida ou, como um colega sueco traduziu essa perigosa expressão hegeliana, assumida por outros! Os outros açambarcam e a dividem com as massas. É levada a cabo de maneira misteriosa e, ao mesmo tempo, partilhada. Não estamos sós no mundo.” (Latour, 73/74)

É importante lembrar e deixar bem claro, que há uma enorme diferença entre a intuição de que a ação é assumida e a outra, de que uma força social passou a agir. É aqui que chegamos, num ponto em que Latour afirma que a ANT herda essa primeira intuição, de que a ação é assumida, inibindo a segunda, mostrando que entre a premissa e a consequência existe um abismo escancarado. Com todo o cuidado, Latour nos guia para a compreensão dessa herança da ANT, novamente, ele trata do papel das ciências sociais em recuperar o seu fôlego inicial, para tanto, segundo ele, é preciso “não fundir todas as funções que assumem a ação numa função única de caráter social – “sociedade”, “cultura”, “estrutura”, “campos”, “indivíduos” ou qualquer nome que se dê. A ação deve permanecer como surpresa, mediação, acontecimento. (…) É preciso começar da subdeterminação da ação, das incertezas e controvérsias em torno de quem e o quê está agindo quando “nós” entramos em ação – e não há, é claro, nenhuma maneira de decidir se essa fonte de incerteza reside no analista ou no ator” (Latour, 74)
Nesse primeiro tempo, compreendemos que devemos seguir devagar para apreender os rastros quando essa intuição se transforma em “algo social” que executa a ação. Latour ainda diz que esses dois argumentos encontram-se em total contradição entre si. E aponta, “como o que nos leva a agir não é feito de material social, pode ser reagrupado de várias maneiras.” (Latour, 75) Ele aponta ainda, que as controvérsias em torno da ação devem ser exploradas a fundo, por mais difíceis que sejam, pois assim não se simplifica de antemão a tarefa de reunir o coletivo.

Mas então, quem é o ator na teoria ator-rede? Para Latour, o “ator” dessa expressão hifenizada, não é a fonte de um ato e sim o alvo de um amplo conjunto de organismos que enxameiam em sua direção. Em uma recente entrevista, o pesquisador Javier Toret, vai definir enxames como uma ação conjunta da rede que combina o emocional das pessoas com a ativação de sequencias de sincronização com o conteúdo. Resgatamos a manifestação em Seattle contra o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), ocorrida em 1999. Para Antonio Negri, é lá que temos a aparição da multidão. Naquele protesto havia uma confluência ampla de sujeitos políticos com os objetivos mais heterogêneos. Como aqueles organismos tão distintos entre si, agiam uns nos outros, podemos compreender segundo a ANT, que aquela multidão de Seattle assumia a luta contra a globalização. Nesse sentido, Toret, assim como Latour em relação as ciências sociais, defende que é necessário fazer um esforço epistemológico, analítico e conceitual para não repetir os mesmos esquemas interpretativos do passado, que no final somente reíteram a sí mesmos. Mais do que nunca, hoje é possível construir modelos experimentais, conjuntos entrelaçados de métodos, para compreender as chaves dos fenômenos políticos auto organizados, como Seattle e também o #15M, bem como outras explosões de movimentos em rede que ainda virão.

A própria palavra ator, que Latour recupera do teatro (pois o ator, no palco, nunca está sozinho ao atuar), desvia nossa atenção para um deslocamento da ação, nos lembrando que isso não é algo controlado (e nem de alguma forma coerente). “Por definição, a ação é deslocada. A ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida, influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que um ator é um ator-rede, é em primeiro lugar para esclarecer que ele representa a principal fonte de incerteza quanto à origem da ação – a vez da palavra rede chegará no devido tempo.” (Latour, 76)

E podemos nos perguntar: por que essa incerteza? Latour diz que essa incerteza deve permanecer o tempo todo, se buscarmos referências nos movimentos auto organizados, essa incerteza é essencial, pois precisamos nos conservar intrigados com a identidade dos participantes em qualquer curso de ação. E é pela importância do social, que vamos guardar como bem precioso os traços das hesitações que os próprios atores sentem em relação aos “impulsos” dos seus atos. Como disse Latour, para que possamos tornar produtiva as ciências sociais, devemos, paradoxalmente, tomar como base todas as incertezas, hesitações, deslocamentos e perplexidades. E aqui lembramos que esses atores vão deixar essas marcas na rede, ou seja, a internet como campo de ação vai estar repleta de dados que contém o que Fernanda Bruno chama de “rastros digitais”, ali vão estar as os impulsos desses atores. “A quantidade e a qualidade dos rastros digitais hoje presentes na Internet oferecem às ciências sociais, segundo este autor, a possibilidade de renovar tanto suas metodologias quanto suas abordagens teórico-conceituais. Tais ciências jamais estiveram diante de uma riqueza tão grande de dados: rastros subjetivos, comportamentais, linguísticos, financeiros, bem como interações, associações e conflitos de diversas escalas tornam-se significativamente mais fáceis de serem descritos e retraçados. Ao mesmo tempo, a natureza desses rastros traz novas inquiteções.” (Bruno, Publicado na Famecos, v. 19, n. 3)
Como bem aponta Bruno, as ciências sociais nunca estiveram tão fartas de materiais quanto estão hoje, os rastros deixados pela multidão na rede são fonte rica de características diversas. Tanto Bruno, quanto Toret, nos alertam para o uso corporativo desses dados que geram fortunas para grande empresas ou para o uso dos dados pelos dispositivos de vigilância, portanto a utilização e a mineração desses dados de uma forma potente, inovadora e massiva fica por conta daqueles contrários ao regime do 1%. Hoje já é possível construir ferramentas para compreender esses dados, onde são usados métodos que entrelaçam tais dados, a fim de explica-los e e explicar fenômenos parecidos . A ideia da investigação ajuda a melhorar a potência do movimento, num campo onde as redes se adaptam e se modificam de acordo com cada novo tipo de informação e posicionamento político.

Assim, Latour afirma, que a ideia mais poderosa das ciências sociais é que outros impulsos sobre os quais não temos controle nenhum nos levam a fazer coisas.

Temos o aparecimento de um termo que Latour denomina de “metafísica prática”, ele vai dizer que “a metafísica empírica é o ponto de chegada das controvérsias sobre as ações, pois elas povoam incansavelmente o mundo com novos impulsos e, também incansavelmente, contestam a existência de outros”. (Latour, 82) É nesse momento que Latour nos desafia a explorar a metafísica dos próprios atores.

O movimento zapatista, por exemplo, se afirma como transformador, diz-se como uma capacidade de reconstruir, na verdade, se coloca como uma reinvenção de comunidade. Adota um papel de resistência a invasão espanhola, os atores se assumem ao mesmo tempo que criam novas formas de existir em comunidade. As ações de resistência povoam o movimento zapatista e também criam novos impulsos para um outro modo de imaginar o futuro.

Compreendemos que a passagem de uma ação para outra gera liberdade, portanto, transformação. Latour vai dizer que alimentar as controvérsias é um meio mais confiável do que sair por aí fundindo ações para explicar uma única ou como ele mesmo explica “não devemos substituir uma expressão precisa, embora surpreendente, do repertório bem conhecido do social por aquilo que se supõe estar oculto nela.” (Latour, 79) A nova abordagem das ciências socias, para Latour, não vai presumir que os atores possuem uma linguagem enquanto os estudiosos dispõe de uma metalinguagem na qual aquela estaria “inserida”. O novo cientista social não ignora o ator, ele realmente escuta o que o ele está dizendo.

No entanto, não é fácil seguir as pistas desses atores. As ações são muitas, as controvérsias em torno da ação têm uma maneira própria de se organizar. Vamos nos ater por um momento, por essa maneira de se organizar que Latour tem se dedicado a estudar: as potências das ações na internet. Para isso, destacamos a definição que Toret vai dar para o termo técnico-político: “tenta explicar esse enorme poder que têm mostrado os usos políticos de diferentes plataformas digitais e canais para eventos, divulgar informações e ativar as formas de ação coletiva e organização que não está na rede, mas o feedback. Técnico-político como o uso tático e estratégico de ferramentas digitais para a organização, comunicação e ação coletiva, como um conceito chave para entender. A partir da perspectiva do sistema de rede, o técnico-político pode redescrever como multidões têm a capacidade se manter conectados os cérebros e corpos em rede para criar a ação “automodular” do coletivo.” (Toret) Latour propõe uma solução, ele vai dizer que embora tenhamos uma lista indefinida de grupos, podemos pressupor uma outra, menor, de recursos que permitam ao pesquisador passar de uma formação de grupo à seguinte. Da mesma forma, Latour julga possível propor um conjunto de recursos, mesmo que limitado, para acompanhar o modo como os atores confirmam ou não uma ação nos relatos sobre aquilo que os leva a agir.

A partir daqui vamos acompanhar o método de Latour para mapear controvérsias sobre a ação. Ele vai apontar características importatíssimas para a compreensão dessa “multidão assumida”.

Não foi átoa que começamos esse texto com a definição de ação proposta por Latour. É preciso ter isso em mente. Para se criar um argumento significativo, essa ação deve ser transformadora. Sem relatos, sem tentativas, sem diferenças, teremos uma ação invísivel. Na ANT, uma ação que não faça diferença, não gere transformação, não deixe traços e não entre num relato não é uma transformação. Como ele mesmo afirma, “Ou faz alguma coisa ou não faz nada.” (Latour, 84) Compreender essa ação é muito importante para entender a “multidão” na teoria ator-rede.

Toret vai falar de uma dimensão “performativa” do #15M – uma construção de cenários de máscaras, com uma história narrativa, permitindo uma cooperação aberta e de propriedade de uma idéia, um evento ou uma identidade – isso vai nos ajudar a avançar nessa compreensão. Vamos entender que a ação técnico-política na internet desse movimento, eventos ou acontecimentos construídos coletivamente, desempenham um papel fundamental no tipo de ação coletiva que o #15M realizou. As táticas técnico-políticas das multidões conectadas abrem novas possibilidades para a ação de amplo espectro da população e são uma nova fonte de poder e uma gramática para a ação coletiva. A multidão aprende a lutar nesses processos em rede na internet e na rua. Isto é conseguido usando táticas de comunicação: como uma arma para criar ação e questionar os poderes que são distribuídos.

Continuando esse mapeamento, Latour traz a questão da figuração. Ele vai dizer, se a ação é uma coisa, sua figuração é outra. Mesmo que uma ação seja anônima, ainda assim é tão figura quanto dotá-la de uma identidade. As ações individuais também precisam de figurações abstratas. Tomemos como exemplo novamente o movimento zapatista, embora adotem uma versão tradicional guerrilheira latino-americana, os zapatistas na prática se constantemente se desfazem de hierarquias militarizadas, descentralizando assim a figura da autoridade. As posições de liderança são rotativas, há um vácuo de autoridade. Marcos, o porta-voz principal e ícone quase mítico dos zapatistas, tem a patente de sub-comandante para enfatizar sua relativa subordinação.

No caso dos atores, Latour vai dizer que eles costumam criticar outras ações com o intuito de eliminá-las ou as deslegitimar. Isso é fácil de entender quando pensamos nas controvérsias na internet, vamos perceber que um ator vai querer afirmar, por exemplo, “Não gosto do ciências sem fronteiras, pois não vejo razão para que estudem fora do Brasil”, percebe-se que o ator tenta claramente subtrair a ação do programa do governo federal ciências sem fronteiras como efetivação de um papel legitimo no mundo. Ora o ator vai tentar acrescentar novas entidades, ora diminuir.

Como última característica para mapear controvérsias na ação, Latour apontar que “os atores podem também ter suas próprias teorias da ação para explicar como se produzem os efeitos das ações”. (Latour, 90) Então, a grande distinção será decidir se a ação, já dotada de existência, figuração e oponentes, deve ser encarada como um intermediário ou como um mediador. A conclusão do relato vai depender da escolha do ator.

Para finalizar, Latour vai tratar da ação como intermediária e mediadora. No caso dos intermediários, a saída e a entrada são exatamente as mesmas. Algo que já sabemos de antemão, é que essa ação não é transformadora: não estará no efeito nada que já não tenha estado na causa. No caso dos mediadores, temos uma situação completamente diferente: as causas não pressupõe os efeitos porque propiciam apenas ocasiões, circunstâncias e precedentes. Então, a ANT vai preferir justamente justamente essa segunda solução, pois ela “pinta um mundo feito de concatenações de mediadores, nas quais pode-se dizer que cada ponto age plenamente”. (Latour, 93) Vale a pena nesse momento, passar de uma certeza para uma incerteza em relação à ação: determinar o que age e de que maneira. E não seria isso que nos fascina quando falamos em multidão? Que ela carregaria consigo uma ações estranhas, novas e imprevistas, cheia de ruídos, quase até perturbadoras e fora de controle?

 

Referências
LATOUR, Bruno. Segunda fonte de incerteza: a ação é assumida. Reagregando o social. Salvador: UFBA, 2012, pp 71-96.

NEGRI, Antonio. Chiapas y el trabajo en la Red. Goodbye Mr. Socialism: la crisis de la izquierda y los nuevos movimientos revolucionarios. Barcelona: Paidós, 2007, pp 63-76.

NEGRI, Antonio. Seattle: la aparición de la multitud. Goodbye Mr. Socialism: la crisis de la izquierda y los nuevos movimientos revolucionarios. Barcelona: Paidós, 2007, pp 53-62.

TORET, Javier. El big data de la Revolución. Publicado no blog LlámaloY. Disponível na internet: <<http://goo.gl/ungYS>> Acessado em 25.03.2013

BRUNO, Fernanda. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Disponível na internet:<< http://bit.ly/11LQOAv>> Acessando em 11.04.2013

HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. São Paulo: Record, 2005

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